Até pela raridade, um texto inteligente sobre os USA e nós (do Público de hoje)
Que nome vamos dar agora aos nossos problemas?
Que nome vamos dar agora aos nossos problemas?
05.11.2008, Rui Ramos
O ódio a Bush foi a mais próspera indústria intelectual do planeta. Valeu prémios em Cannes e até um Nobel de Economia
Escrevo enquanto os americanos votam. Seja qual for o resultado, uma coisa é quase certa: vão chegar ao fim oito anos de simplicidade, um tempo em que todos os problemas do mundo tiveram apenas um nome: George W. Bush. Guerras, furacões, as temperaturas médias do planeta, bancarrotas bancárias - tudo, sem excepção, se pôde imputar a Bush, com assentimento geral.
O ódio ao presidente americano foi a mais próspera indústria intelectual do planeta. Valeu prémios no festival de Cannes e até, já este ano, um Nobel da Economia. E não foram apenas os inimigos de sempre que usaram Bush como pai e mãe de todos os males. Também os "neoconservadores" nos explicam há dois anos que as ideias que emprestaram à presidência estavam certas, e que foi a sua aplicação por Bush que estragou tudo.
Não admira que Obama tivesse fingido que estava a concorrer contra Bush, reduzindo McCain a um avatar do presidente. Quem é que, neste momento, não gostaria de ter Bush como rival numa eleição?
Há que admitir: não é fácil imaginar alguém mais adequado para o papel de bode expiatório universal. Sem brilho e sem eloquência, incapaz de argumentar para além das frases prontas-a-dizer, parece, no entanto, ter sido capaz de se impor aos seus conselheiros e de decidir entre pontos de visto opostos. Foi assim fácil submetê-lo, ao mesmo tempo, a todo o menosprezo e a todas as responsabilidades.
Pelo meio, esquecemo-nos de muita coisa. Em primeiro lugar, que Bush nunca se propôs ser o Presidente que finalmente foi. Entre 1993 e 2001, Bill Clinton dera aos americanos uma das suas mais agitadas e controversas presidências (a destituição de 1998, repetidas operações militares nos Balcãs e no Iraque, a desastrosa invasão da Somália, etc.).
Bush pretendeu acalmar e reunificar. Como governador do Texas, formara coligações com os democratas. A sua filosofia, em ruptura com rigores "liberais", resumia-se a uma versão conservadora da "Terceira Via" da esquerda: o "conservadorismo compassivo". Em relação ao mundo, anunciou que o negócio dos EUA não era "reconstruir Estados". Houve mesmo quem temesse um "neo-isolacionismo" americano.
Esta presidência sem grandes objectivos ou distinções naufragou no dia 11 de Setembro de 2001. Subitamente, Bush teve de fazer história. Precisou não só de responder aos jihadistas, mas também de evitar uma recessão. É hoje fácil criticar as suas opções, e reduzi-las aos preconceitos privativos dele ou dos seus conselheiros favoritos.
Mas as guerras do Afeganistão e do Iraque, tal como o recente resgate dos bancos, foram votadas por maiorias de ambos os partidos. Bush "mentiu" no caso do Iraque, como reclamam os seus inimigos? Não há prova de que ele próprio não estivesse enganado, tal como o seu antecessor (veja-se o discurso de Clinton sobre o estado da união de Janeiro de 1998).
Será talvez mais interessante perceber o modo como Bush correspondeu a uma maneira de encarar o mundo que, desde o fim da década de 1980, se tornou comum à esquerda e à direita ocidentais.
Bush surgiu em 2001 num Ocidente dominado por Governos de esquerda. A Guerra Fria era uma memória remota. Toda a gente bem pensante, depois da crise financeira de 1998, passava por mais uma fase de rancor ao "liberalismo" da década de 1980. Era o tempo do Fim da História e da Terceira Via. O Fim da História dizia que não havia alternativa ao modelo político ocidental, destinado a globalizar-se.
A Terceira Via ensinava que era possível ao Estado condicionar os mercados de modo a ter crescimento e distribuição de riquezas, sem crises ou desigualdades. Foram estas ideias que orientaram a intervenção no Iraque, onde se julgou inicialmente que bastaria derrubar um ditador para ter democracia, e a persistente manipulação dos mercados, através dos impostos e dos juros. Assim foram crescendo a bolha do crédito e os compromissos militares. Mas nem o subprime nem a "mudança de regime" no Iraque (decidida por Clinton) começaram com Bush.
Basta ouvir Obama ou McCain para perceber que os termos do debate no Ocidente não se alteraram em relação à década de 1990. Em Berlim, Obama reafirmou a universalidade da democracia, que está determinado a implantar com toda a força no Afeganistão. Os seus remédios para a crise económica são investir e cortar impostos (à "classe média", diz ele). Obama ou McCain não são exactamente Clinton nem Bush. Mas os problemas que forçaram Clinton e Bush a ser quem foram não acabaram com as presidências deles. Em breve, teremos de lhes dar outro nome. Talvez já tenha sido achado hoje. Historiador
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