Saturday, March 29, 2008

O delito de opinião: as "mentiras"

Pacheco Pereira hoje no Público:


"Não houve mentiras porque Bush e Blair estavam convencidos de que as armas de destruição maciça existiam no Iraque

Os governos mentem. Nem sequer vale a pena acrescentar a frase "todos mentem", que agora o Dr. House popularizou ao lembrar aos seus assistentes de que é boa prática presumir esse facto para o diagnóstico médico. Nem acrescentar que a vida social se alicerça na mentira "social" e que sem ela não poderíamos viver sem ser num sistema totalitário, em total transparência face ao Big Brother. A única verdade que merece o V grande é a do Divino, mas essa não cuida das matérias terrenas que Deus deixou a César. É cinismo? Não, não é, são os facts of life.

Todos os governos mentem por duas razões distintas, uma má e condenável e outra necessária e conforme o sentido de Estado, a segurança e o bem-estar dos cidadãos, logo, boa. Estive para escrever boa entre aspas, para fazer vénia ao significado moral da palavra, mas de facto não tem muito sentido fazê-lo. É boa mesmo porque é boa, porque se vive na terra e não no Paraíso utópico.

A parte condenável da mentira do Estado, dos governos, dos políticos, é a que significa ocultar dados que não se quer que se saibam porque prejudicam a imagem governamental ou dos políticos, para encobrir ilegalidades, enganos, falcatruas diversas, inaceitáveis sob qualquer ponto de vista. Essa parte da mentira é a que exige escrutínio e denúncia pública, a que justifica os direitos da comunicação social num país livre para denunciar os abusos do poder, a que o Parlamento deve ter condições para inquirir e denunciar, é simples de definir e tratar.

Já é mais complicada a mentira necessária que todos os governos democráticos praticam. Como por exemplo, a que leva um ministro das Finanças a negar uma desvalorização da moeda sem ambiguidades, duas horas antes de a anunciar. Ou a que leva qualquer primeiro-ministro português a responder com um enfático "não" se lhes fosse perguntado: conduz o Estado português operações de espionagem nos nossos muito amigos países africanos de expressão portuguesa? Claro que não, nunca, jamais em tempo algum.

Os críticos da intervenção americana do Iraque que andam desde o primeiro dia a bradar "mentirosos" para Bush, Blair, Aznar e Barroso devem estar a pensar, chegados aqui no artigo, que eu vou defender a necessidade da mentira de Estado "boa", para o que se passou com as armas de destruição maciça. Enganam-se porque no essencial, e é aqui o essencial que conta, não houve mentiras nem do primeiro grau, nem do segundo, nem do terceiro. Nem mentira para ocultar uma verdade que se conhecia e se queria esconder, nem mentira com dolo "necessário" para servir um bem maior, legitimar uma invasão que se pensava ser estrategicamente vital para a segurança nacional.

Não houve mentiras porque Bush e Blair estavam convencidos de que armas de destruição maciça existiam no Iraque, como também o estavam Chirac, Putin e o Estado-Maior iraquiano. Os interrogatórios feitos aos responsáveis militares iraquianos mostram que também eles estavam convencidos da existência destas armas e ficaram surpreendidos quando Saddam lhes disse no princípio da guerra que não existiam. Muitos, aliás, continuaram convencidos de que as armas existiam em unidades muito especiais sob o controlo dos filhos de Saddam, Uday e Quday, e que Saddam os estava a enganar.

Havia pouca gente com dúvidas, mas também sem certezas. Havia na CIA, nas Nações Unidas, gente com dúvidas sobre se as "provas" que os americanos apresentaram eram mesmo provas a sério, mas eram mais dúvidas sobre as "provas" do que sobre o facto de Saddam poder ter armas de destruição maciça. Até porque havia o preocupante facto, que hoje não convém lembrar, de que ele não só as tivera como as usara contra os curdos e iranianos. Havia dúvidas muito mais sérias sobre a justeza do política americana de invadir o Iraque, muito mais assertivas, muito mais fundamentadas, mas não era por causa das armas.

A Administração Bush actuou como deve actuar um governo responsável que acha que está em guerra - pela Lei de Murphy, se uma coisa pode correr mal, mais vale prepararmo-nos para que corra mal. Onde errou foi em deixar centrar a sua argumentação nas armas, o que resultou das pressões de Colin Powell e do Departamento de Estado para obter uma resolução das Nações Unidas, e que levou à apresentação de "provas" que vieram a revelar-se inconsistentes ou falsas. A Administração Bush fê-lo porque não tinha nada de melhor a apresentar, não porque não estivesse convencida de que as armas não existissem.

As provas materiais que possuíam eram débeis, equívocas e nalguns casos falsas, embora saber quem as "plantou" nos serviços de informação seja toda uma outra história. Sim, algumas "provas" eram "mentira", mas a convicção de que havia armas de destruição maciça não era mentira.

Claro que no estilo moralmente excitado com que se discute o Iraque, pouca atenção se dá aos factos e tudo se move por "impressões" e por duas ou três frases desirmanadas usadas como prova, como é o caso do que disse o inspector Scott Ritter, ou citações de Hans Blix, que só se tornaram tão unívocas depois de não se encontrarem as armas depois da invasão. No caso de Scott Ritter o testemunho foi sempre prejudicado na sua credibilidade pelas suas relações com o governo iraquiano.

Blix, por seu lado, no artigo muito crítico que escreveu no Guardian sobre os cinco anos de guerra, admitiu que era "compreensível" que Bush e Blair acreditassem na existência das armas no Outono de 2002, perguntando-se ele próprio, sem saber responder, "porque é que os iraquianos tinham impedido os inspectores das Nações Unidas durante os anos 90 quando não tinham nada que esconder".

É verdade que Blix responsabiliza Bush e Blair pelo que "sabiam em Março de 2003", referindo-se ao trabalho da equipa de inspectores a que presidia e que ocorreu entre as duas datas. A questão só pode ser colocada assim a posteriori, porque o que sabiam "em Março de 2003" é que os inspectores não tinham encontrado as armas e o próprio relatório que Blix apresentou ao Conselho de Segurança em Fevereiro de 2003 não é tão seguro como Blix agora pretende que foi.

Entre outras coisas, apresentava reservas sobre o que tinha acontecido a armamento citado em documentos iraquianos e que o governo de Saddam dizia ter destruído sem apresentar provas. De qualquer modo, qualquer observador que leia com isenção a documentação existente na época só pode chegar à conclusão de que a convicção da existência de armas de destruição maciça era legítima, mas tinha uma dose excessiva de voluntarismo.

Esse voluntarismo pagou-se caro porque a utilização da existência das armas de destruição maciçva como argumento central de legitimação da invasão revelou-se o principal factor de desautorização de uma guerra que muitos não viam em 2003 com as cores negras com que a vêem hoje. A sua importância na descredibilização da operação foi enorme nas democracias ocidentais e tornou-se incontornável.

Quanto à "mentira" é que não vale a pena discutir racionalmente e com apoio dos factos indesmentíveis, de muitos estudos e análises feitos por especialistas e historiadores que não têm a mínima simpatia pela guerra iraquiana nem pela política de Bush, porque já ninguém ouve com o ruído propagandístico.

Veja-se, por exemplo, aquela que é considerada a melhor história militar da invasão, Cobra II, de autoria de Michael Gordon e do general Bernard Trainor e que mostra como todos os planos militares americanos foram feitos tendo em conta a existência e possibilidade de um ataque químico ou biológico, com consideráveis custos numa estratégia que fazia da rapidez a sua pedra de toque, que mostra como unidades especiais andaram à procura das armas por todo o lado e a perplexidade com que foi recebida a informação de que estas não eram encontradas.

Se de facto tivesse havido a "mentira" deliberada que é assacada a americanos e ingleses, então não seria difícil, pelo mesmo princípio de dolo, encontrar qualquer coisa, uns bidões num armazém, umas ampolas biológicas nalgum sítio.

Houve aliás quem sugerisse que os americanos iam fazer isso e, para "mentiroso" antes, "mentiroso depois, deveria ser a regra. Seria aliás quase impossível de verificar se era verdade ou não. Só que os factos são outros."

Saturday, March 22, 2008

A lei da rua

Pulido Valente hoje no Público sobre o caso (vulgar) da aluna do Carolina Michaëlis.

22.03.2008, Vasco Pulido Valente

Na Escola Carolina Michaëlis do Porto, uma escola da classe média e não uma escola "problema" de um bairro popular, a professora de Francês (altamente qualificada, por sinal) confiscou um telemóvel a uma aluna. Quase com certeza porque o telemóvel interferia com a aula (ou porque estava a ser usado, ou porque tocava, ou por uma razão qualquer igualmente grave). A dita aluna berrou e agrediu a professora. Não a deixou sair da sala. À volta, a turma ria e comentava: "Olha que a velha vai cair!", por exemplo. No fim, já havia um molho tumultuário e confuso, que outra criancinha prestavelmente filmava e que dali a pouco apareceu no YouTube e, a seguir, na televisão. Convém acrescentar que a professora era pequena e frágil e a aluna alta, anafada e forte. A brutalidade da coisa constrangia.

Perante isto, os nossos comentadores descobriram logo um culpado: os pais. Toda a gente imagina a cantilena: pais que não se interessam pelos filhos; pais que não "educam" os filhos; pais que não lhes tramitem os "valores" do respeito, da dignidade e da convivência. Muito bem. Mas não me cheira que a aluna do telemóvel bata habitualmente nos pais como bateu na professora. Porquê? Porque não acredito que ela goze em casa a impunidade de que goza na escola. Na escola não lhe podem responder bofetada a bofetada. Não a podem em definitivo pôr fora do sistema de ensino (excepto com a aprovação pessoal do ministro). Não a podem sequer fazer perder o ano por faltas. Não há melhor ambiente para um tiranete. É a lei da rua. Em última análise, é a lei da violência.

O Observatório da Segurança em Meio Escolar (reparem no nome) registou 185 agressões (físicas, como é óbvio) a professores nos 180 dias do ano lectivo. Tirando as que não foram "participadas" por medo ou por vergonha. Mesmo assim: mais de uma por dia. E não se trata, como provou a Escola Carolina Michaëlis, de um fenómeno marginal, atribuível ao analfabetismo e à pobreza. O que essa monstruosidade indica é a profunda corrupção da escola pública. O Governo pretende agora "avaliar" os professores. Se existisse justiça neste mundo, devia "avaliar" primeiro a longa linha de ministros que desde Veiga Simão (um homem nefasto), Roberto Carneiro e Marçal Grilo arrasaram no ensino do Estado a autoridade e a disciplina e o tornaram na trágica farsa que hoje temos.

O delito de opinião sobre o Iraque

Pacheco Pereira hoje no Público.
Tratando-se de problema que partilho, à minha pequena escala, este delito de opinião...

22.03.2008, José Pacheco Pereira

A turba que grita "crime" conforta-se com meia dúzia de meias verdades, muitas falsidades e uma ignorância militante

Existe em Portugal um delito de opinião para o qual uma pequena turba, que só parece grande porque é alimentada pelo silêncio de muitos, pede punição, censura, opróbrio, confissão pública do crime, rasgar de vestes. Esse delito de opinião é ter estado a favor da invasão do Iraque e é particularmente agravado nos casos raríssimos em que se continua a estar a favor, esses então de reincidência patológica que justificam prisão e banimento.

Esta persistência no erro só pode mostrar tenebrosos defeitos de carácter e uma crueldade sem limites, que são apontados a dedo como devendo justificar o ostracismo e a incapacidade cívica. Como só se aplica a meia dúzia de pessoas, visto que a maioria dos apoiantes originais abjurou como Durão Barroso, ainda é mais fácil apontar o dedo. Se houvesse pelourinho na cidade, a turba lá nos levaria a mim e ao José Manuel Fernandes, que suporta nove décimos de ataques à sua direcção do PÚBLICO por causa deste delito de opinião, para a humilhação pública.

Para essa turba que grita "crime" os factos interessam pouco, o conhecimento do que aconteceu fica confortado com meia dúzia de meias verdades, muitas falsidades, mas acima de tudo uma ignorância militante que não só não sabe como não quer aprender. Os factos não lhes interessam de todo. Olharem o Iraque em 2003, 2006, 2008 é a mesma coisa, só muda o número do final do ano. Têm uma tese e, aconteça o que acontecer, o que vale é a tese e essa tese é normalmente uma visão do mundo assente num único pilar, o antiamericanismo militante por razões puramente ideológicas. Essas razões existem, mas raras vezes são enunciadas para não prejudicar o bater no peito moral com a suspeita de que a mão que bate o faz por uma política radical que não ousa mostrar-se. Desse ponto de vista, as críticas a Bush têm um precedente curioso, parecem as críticas a Churchill e a Reagan.

Há, como em todas as regras, meia dúzia de excepções de pessoas que foram contra a guerra e que o foram por razões mais sérias e que foram capazes de apontar erros reais da actuação dos americanos, em particular os que vinham quer da ignorância da dimensão daquilo em que se estavam a meter, quer da sua impreparação para o fazer e das suas erradas prioridades. Essas objecções sérias merecem ser discutidas e, nalguns casos, deve-se-lhes o reconhecimento da razão que tiveram antes do tempo.

Mas, insisto, os interlocutores sérios são a excepção. Nesta matéria, quem faz a lei ideológica e tribunícia é o Bloco de Esquerda, muitas vezes secundado pela voz de Mário Soares. Todos falam com a linguagem, os slogans, os tiques, os excessos verbais, a arrogância moral e a pesporrência do Bloco de Esquerda e não querem saber de mais nada do que da condenação moral dos "responsáveis" por "muitas centenas de milhares de mortos". Os números são plásticos, podem ser exagerados porque são sempre números do "crime".

Não lhes interessa Saddam, não lhes interessa a submissão dos xiitas, não lhes interessa a natureza de um regime que atacou aldeias curdas com armas químicas, não lhes interessa um ditador que provocou guerras, essas sim, com mais de um milhão de mortos, e que invadiu os países vizinhos. Nada mais lhes interessa.

Dito isto, vamos pois continuar a cometer o delito de opinião. A última coisa que direi é que, cinco anos depois, na operação iraquiana tudo correu bem, porque, em muitos aspectos, correu até bastante mal. Só que não é pelas mesmas razões, nem pelas mesmas causas, nem pelos mesmos motivos, dos que bradam ao crime e à "mentira". Mais adiante voltaremos aqui, mas comecemos pelo princípio.

Primeiro, há os pressupostos da decisão de invadir, tomada muito antes da invasão e não necessariamente pelas mesmas razões apresentadas publicamente para a justificar. A decisão de invadir tem pouco a ver com a existência de armas de destruição maciça, ou com a possibilidade de Saddam ser um apoiante da Al-Qaeda, que não era. A origem da decisão tem a ver com uma ideia mais global da resposta à crise suscitada pelo terrorismo apocalíptico que se verificou nas torres nova-iorquinas e no Pentágono, mas também nas embaixadas africanas dos EUA, nas discotecas de Bali, no metro de Londres, nos comboios suburbanos de Madrid e um pouco por todo o lado, da Índia à China, do Cáucaso aos Balcãs.

Na Administração americana surgiu a ideia de que, para combater a nova forma de guerra que é o terrorismo, não bastava erradicar as bases terroristas onde elas existiam (como no Afeganistão ou Sudão), o que era visto como um sintoma, mas ir à causa, à relação de forças que bloqueava todos os processos políticos que deveriam "distender" o Médio Oriente e permitir a resolução de conflitos antigos como o da Palestina.

Esses conflitos não eram a causa do terrorismo da Al-Qaeda, de uma natureza diferente do Hezbollah ou do Hamas, mas, ao funcionarem como um irritante geral, bloqueavam as forças moderadas e moderadoras no mundo árabe-muçulmano e impediam a estabilização da região. A importância geoestratégica do Médio Oriente era crucial para o resto do mundo por causa da dependência do petróleo, líquido que tem a tendência natural para surgir só em sítios complicados.

Se a discussão se centrar neste ponto, o da natureza da resposta americana e da sua razoabilidade, ela é frutuosa, porque contém um genuíno problema: o terrorismo fundamentalista e o modo de o defrontar. Para o discutir há que entrar em conta com os aspectos de maior complexidade que não só estão contidos no problema, como na suposta "solução" que estava implícita na invasão.

E aqui é que existem as objecções mais sérias, como também muito do que correu mal no processo iraquiano e que podia ter sido evitado. Sim, porque nem tudo o que aconteceu no Iraque se deveu à invasão em si, nem aos pressupostos da invasão (alguns dos quais mostraram apontar no sentido correcto nos primeiros momentos), mas ao modo como foi efectuada a ocupação do Iraque. Ou seja, nem tudo o que aconteceu depois de 2003 se deve à invasão, nem é sua consequência necessária ou inevitável, nem a tem como pressuposto.

Muito do que aconteceu no Iraque deve-se a erros cometidos depois da invasão, uns inevitáveis devido ao modo ingénuo, ignorante e incompetente como foi previsto o período da ocupação, outros perfeitamente evitáveis e que se devem a erros clamorosos da Administração Bush.

Todas as críticas que salientam a imprudência e a impreparação americana para lidar com uma das áreas mais complexas do mundo, onde existe há muito tempo um nó górdio da política mundial, criado pelas potências europeias desde a divisão do império otomano e agravado por uma miríade de ideias ocidental como o marxismo, o nacionalismo e mesmo a forma moderna do fundamentalismo islâmico, têm razão de ser. Mas uma coisa é criticar os americanos pela sua ocupação do Iraque e outra é contestar a sua decisão de invadir e negar que nem todos os efeitos da invasão foram desastrosos e alguns foram conseguidos.

Por detrás do fumo dos atentados em Bagdad, a única coisa que vemos na televisão, há muita coisa a mudar no Iraque e alguma no sentido desejado pelos americanos. Mas dizer isto parece que causa escândalo. Talvez por isso, fechar o que está a acontecer no Iraque debaixo de conclusões férreas, definidas de antemão desde 2003, e a que pouco interessa a realidade que não seja a dos atentados, é mais do domínio da propaganda do que da realidade.
Segundo, há a questão das "armas de destruição massivas".

Wednesday, March 12, 2008

Encalhados (Helena Matos no Público de 11/3/2008)

Encalhados

Helena Matos

Os professores não inventaram o monstro: adaptaram-se às reformas que lhes foram entregues pela 5 de Outubro
Vinte e seis ministros em três décadas e meia para um ministério onde os funcionários são mais de duzentos mil. Na sua maioria são mulheres, têm uma formação superior à da população portuguesa e são conhecidas como stôras.

Não houve alteração política em Portugal que não sublinhasse o potencial e os perigos resultantes da dispersão regional e da extraordinária proximidade que os professores mantêm com a população. Os professores sempre foram vistos como um extraodinário veículo de propaganda ou como perigosos agitadores: a República pô-los a oficiar cerimónias maçónicas, o Estado Novo controlou-os e perseguiu-os mais do que a quaisquer outros funcionários e a democracia almejou que eles construíssem, em cada escola, aquele que era o seu modelo de sociedade ideal - um universo onde a disciplina surgia naturalmente, se trabalhava sem esforço e onde todos eram iguais.

Não por acaso é um dos homens que associamos ao espírito da Primavera marcelista e que na democracia voltou a ser ministro, Veiga Simão, que encontramos a pôr em marcha a escola enquanto alter-ego duma sociedade que vê na igualdade uma espécie de estado de bondade irremediavelmente perdido para os adultos mas passível de ser recriado para as crianças e jovens.

Ao extinguir o chamado ensino técnico entendeu a geração de Veiga Simão que se estava a dar um forte contributo para acabar com as diferenças entre pobres e ricos, pois todos passariam a frequentar a escola unificada. Simultaneamente, a escala de avaliação de 1 a 20 foi condensada em 1 a 5.

O resultado foi o 3 tornar-se nota universal para alunos que iam do medíocre ao bom. Se algo a 5 de Outubro conseguiu criar rapidamente nas escolas foi esse assustador centrão da mediocridade.

Mas nada disto foi ou é suficiente para que o Ministério da Educação se dê por derrotado nos seus desígnios de política social: em nome da igualdade, a actual equipa ministerial terminou com o ensino artístico, uma decisão que à semelhança do que sucedeu com o ensino técnico pode vir a ter implicações futuras calamitosas.

Sob a batuta da 5 de Outubro o universo-escola criou uma linguagem própria que tornou apresentável este reino do absurdo, em que se tornaram indistintos não apenas os resultados mas também o que fazia cada um na escola.

Os professores e alunos passaram a ensinantes e aprendentes mútuos, a transmissão de conhecimentos deu lugar a uma situação relacional onde por vezes se ficava retido e a violência escolar passou ser encarada como uma forma não enquadrada da expressão de problemas. Para cúmulo, o próprio saber dos professores entrou numa espiral de relativismo: o que importava era acumular créditos em acções de formação e não o conteúdo dessas acções. Assim, era rigorosamente igual para um docente de Alemão frequentar uma acção de formação em língua alemã, ecologia ou azulejaria.

Isto numa versão relativamente bondosa do sucedido, porque em alguns casos chegaram a fazer-se seminários para docentes ministrados por "terapeutas de energias" e astrólogos. Tudo isto devidamente avalizado e estimulado pelo ministério.

Os professores não inventaram nada do monstro que anda para aí. Simplesmente se adaptaram a todas as reformas prontas a usar que lhes foram entregues pela 5 de Outubro. Os professores temem agora - e têm fortes motivos para isso - que a avaliação os torne nos bodes expiatórios do falhanço duma política, a da educação, que leva 11 por cento do investimento público português e não apresenta resultados minimamente satisfatórios.

Diz a ministra que os professores não querem ser avaliados. Provavelmente tem razão a senhora ministra. Mas os professores apenas se limitam a fazer seus os princípios básicos do ministério. Durante quantos anos o ministério tentou que não fossem conhecidos os dados que permitem elaborar os rankings? E, por acaso, deixa Maria de Lurdes Rodrigues que os pais avaliem as escolas? Quando digo avaliar não falo de preencher fichas ou dar notas a professores. Falo da única forma que conheço de avaliação dum serviço: termos a liberdade de o trocar por outro.

O critério da escolha das famílias - instituindo o cheque ensino e dando liberdade às escolas públicas para se organizarem consoante as necessidades daqueles que as procuram - é único processo de se poder avaliar o trabalho duma escola e dos seus professores. Os professores serão avaliados no dia em que numa qualquer escola pública, em Portugal, um encarregado de educação possa dizer que quer transferir o seu filho para a escola A, seja ela pública ou privada, simplesmente porque ela é melhor e que, na sequência dessa transferência, os cinco mil euros que o Estado português gasta anualmente com a educação do seu filho passarão a ser entregues na escola Y e não naquela que frequentou até então.

As fichas que tanta indignação têm suscitado não pretendem avaliar professores. São simplesmente um mecanismo de controlo por parte do ministério para com os seus funcionários. Mecanismo autoritário e legitimador de subjectividades várias como sempre aconteceu na relação entre o ministério e os professores. Mas aos pais e aos alunos essas fichas interessam tanto quanto os requerimentos que os professores têm de preencher. Ou seja, quase nada.

Os pais e os alunos estão encalhados à espera que algo consiga quebrar esta concepção da educação que leva a que a mesma esteja reduzida a uma guerra entre a rua, onde os professores desfilam ao sábado, e o ministério donde a ministra faz prova de vida nos noticiários da noite do fim-de-semana. Quer os professores quer a ministra sabem que não têm margem para muito mais.

Entretanto, de segunda a sexta, os alunos portugueses fazem o seu ensino obrigatório numa escola que não podem escolher. Será que a ministra e os professores querem mesmo falar de avaliação?

Uma lista impressionante: Eduardo Correia, Vitorino Magalhães Godinho, Vasco Gonçalves, Rui Grácio, Manuel Rodrigues de Carvalho, José Emílio da Silva, Vítor Alves, Mário Sottomayor Cardia, Carlos Lloyd Braga, Luís Valente de Oliveira, Luís Veiga da Cunha, Vítor Pereira Crespo, João Fraústo da Silva, José Augusto Seabra, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Diamantino Durão, Couto dos Santos, Manuela Ferreira Leite, Marçal Grilo, Guilherme d"Oliveira Martins, Santos Silva, Domingos Pedrosa de Jesus, David Justino, Maria do Carmo Seabra, Maria de Lurdes Rodrigues - eis os ministros da Educação desde Abril de 1974.

Sobre o processo Casa Pia espero que o tempo traga a serenidade e a distância necessárias para que percebamos o que aconteceu. (E já que falamos de professores, nunca consegui entender a resignação com que tantos docentes daquela instituição aceitaram, durante anos, que os seus alunos fossem vítimas de abusos.)

Mas se o processo em si mesmo é perturbante, alguns aspectos que lhe são marginais nada contribuem para que se quebre o clima de suspeição que envolve todo este caso. Por exemplo, como se explica a dupla contratação, pela ministra da Educação, de João Pedroso, irmão e advogado de Paulo Pedroso, para proceder a um levantamento da legislação do Ministério da Educação? Não só é difícil de entender que nos seus mais de duzentos mil funcionários nenhum conseguisse dar conta desta tarefa como resta a dúvida: o Ministério da Educação não conhece a sua própria legislação?

Mas mais grave ainda é a revelação agora feita pelo Sol de que o chefe de gabinete do ministro Vieira da Silva teria feito chegar à defesa de Paulo Pedroso um documento pessoal da ex-provedora Catalina Pestana. Quero acreditar que isto não é verdade mas infelizmente não encontro qualquer desmentido.