Wednesday, March 12, 2008

Encalhados (Helena Matos no Público de 11/3/2008)

Encalhados

Helena Matos

Os professores não inventaram o monstro: adaptaram-se às reformas que lhes foram entregues pela 5 de Outubro
Vinte e seis ministros em três décadas e meia para um ministério onde os funcionários são mais de duzentos mil. Na sua maioria são mulheres, têm uma formação superior à da população portuguesa e são conhecidas como stôras.

Não houve alteração política em Portugal que não sublinhasse o potencial e os perigos resultantes da dispersão regional e da extraordinária proximidade que os professores mantêm com a população. Os professores sempre foram vistos como um extraodinário veículo de propaganda ou como perigosos agitadores: a República pô-los a oficiar cerimónias maçónicas, o Estado Novo controlou-os e perseguiu-os mais do que a quaisquer outros funcionários e a democracia almejou que eles construíssem, em cada escola, aquele que era o seu modelo de sociedade ideal - um universo onde a disciplina surgia naturalmente, se trabalhava sem esforço e onde todos eram iguais.

Não por acaso é um dos homens que associamos ao espírito da Primavera marcelista e que na democracia voltou a ser ministro, Veiga Simão, que encontramos a pôr em marcha a escola enquanto alter-ego duma sociedade que vê na igualdade uma espécie de estado de bondade irremediavelmente perdido para os adultos mas passível de ser recriado para as crianças e jovens.

Ao extinguir o chamado ensino técnico entendeu a geração de Veiga Simão que se estava a dar um forte contributo para acabar com as diferenças entre pobres e ricos, pois todos passariam a frequentar a escola unificada. Simultaneamente, a escala de avaliação de 1 a 20 foi condensada em 1 a 5.

O resultado foi o 3 tornar-se nota universal para alunos que iam do medíocre ao bom. Se algo a 5 de Outubro conseguiu criar rapidamente nas escolas foi esse assustador centrão da mediocridade.

Mas nada disto foi ou é suficiente para que o Ministério da Educação se dê por derrotado nos seus desígnios de política social: em nome da igualdade, a actual equipa ministerial terminou com o ensino artístico, uma decisão que à semelhança do que sucedeu com o ensino técnico pode vir a ter implicações futuras calamitosas.

Sob a batuta da 5 de Outubro o universo-escola criou uma linguagem própria que tornou apresentável este reino do absurdo, em que se tornaram indistintos não apenas os resultados mas também o que fazia cada um na escola.

Os professores e alunos passaram a ensinantes e aprendentes mútuos, a transmissão de conhecimentos deu lugar a uma situação relacional onde por vezes se ficava retido e a violência escolar passou ser encarada como uma forma não enquadrada da expressão de problemas. Para cúmulo, o próprio saber dos professores entrou numa espiral de relativismo: o que importava era acumular créditos em acções de formação e não o conteúdo dessas acções. Assim, era rigorosamente igual para um docente de Alemão frequentar uma acção de formação em língua alemã, ecologia ou azulejaria.

Isto numa versão relativamente bondosa do sucedido, porque em alguns casos chegaram a fazer-se seminários para docentes ministrados por "terapeutas de energias" e astrólogos. Tudo isto devidamente avalizado e estimulado pelo ministério.

Os professores não inventaram nada do monstro que anda para aí. Simplesmente se adaptaram a todas as reformas prontas a usar que lhes foram entregues pela 5 de Outubro. Os professores temem agora - e têm fortes motivos para isso - que a avaliação os torne nos bodes expiatórios do falhanço duma política, a da educação, que leva 11 por cento do investimento público português e não apresenta resultados minimamente satisfatórios.

Diz a ministra que os professores não querem ser avaliados. Provavelmente tem razão a senhora ministra. Mas os professores apenas se limitam a fazer seus os princípios básicos do ministério. Durante quantos anos o ministério tentou que não fossem conhecidos os dados que permitem elaborar os rankings? E, por acaso, deixa Maria de Lurdes Rodrigues que os pais avaliem as escolas? Quando digo avaliar não falo de preencher fichas ou dar notas a professores. Falo da única forma que conheço de avaliação dum serviço: termos a liberdade de o trocar por outro.

O critério da escolha das famílias - instituindo o cheque ensino e dando liberdade às escolas públicas para se organizarem consoante as necessidades daqueles que as procuram - é único processo de se poder avaliar o trabalho duma escola e dos seus professores. Os professores serão avaliados no dia em que numa qualquer escola pública, em Portugal, um encarregado de educação possa dizer que quer transferir o seu filho para a escola A, seja ela pública ou privada, simplesmente porque ela é melhor e que, na sequência dessa transferência, os cinco mil euros que o Estado português gasta anualmente com a educação do seu filho passarão a ser entregues na escola Y e não naquela que frequentou até então.

As fichas que tanta indignação têm suscitado não pretendem avaliar professores. São simplesmente um mecanismo de controlo por parte do ministério para com os seus funcionários. Mecanismo autoritário e legitimador de subjectividades várias como sempre aconteceu na relação entre o ministério e os professores. Mas aos pais e aos alunos essas fichas interessam tanto quanto os requerimentos que os professores têm de preencher. Ou seja, quase nada.

Os pais e os alunos estão encalhados à espera que algo consiga quebrar esta concepção da educação que leva a que a mesma esteja reduzida a uma guerra entre a rua, onde os professores desfilam ao sábado, e o ministério donde a ministra faz prova de vida nos noticiários da noite do fim-de-semana. Quer os professores quer a ministra sabem que não têm margem para muito mais.

Entretanto, de segunda a sexta, os alunos portugueses fazem o seu ensino obrigatório numa escola que não podem escolher. Será que a ministra e os professores querem mesmo falar de avaliação?

Uma lista impressionante: Eduardo Correia, Vitorino Magalhães Godinho, Vasco Gonçalves, Rui Grácio, Manuel Rodrigues de Carvalho, José Emílio da Silva, Vítor Alves, Mário Sottomayor Cardia, Carlos Lloyd Braga, Luís Valente de Oliveira, Luís Veiga da Cunha, Vítor Pereira Crespo, João Fraústo da Silva, José Augusto Seabra, João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Diamantino Durão, Couto dos Santos, Manuela Ferreira Leite, Marçal Grilo, Guilherme d"Oliveira Martins, Santos Silva, Domingos Pedrosa de Jesus, David Justino, Maria do Carmo Seabra, Maria de Lurdes Rodrigues - eis os ministros da Educação desde Abril de 1974.

Sobre o processo Casa Pia espero que o tempo traga a serenidade e a distância necessárias para que percebamos o que aconteceu. (E já que falamos de professores, nunca consegui entender a resignação com que tantos docentes daquela instituição aceitaram, durante anos, que os seus alunos fossem vítimas de abusos.)

Mas se o processo em si mesmo é perturbante, alguns aspectos que lhe são marginais nada contribuem para que se quebre o clima de suspeição que envolve todo este caso. Por exemplo, como se explica a dupla contratação, pela ministra da Educação, de João Pedroso, irmão e advogado de Paulo Pedroso, para proceder a um levantamento da legislação do Ministério da Educação? Não só é difícil de entender que nos seus mais de duzentos mil funcionários nenhum conseguisse dar conta desta tarefa como resta a dúvida: o Ministério da Educação não conhece a sua própria legislação?

Mas mais grave ainda é a revelação agora feita pelo Sol de que o chefe de gabinete do ministro Vieira da Silva teria feito chegar à defesa de Paulo Pedroso um documento pessoal da ex-provedora Catalina Pestana. Quero acreditar que isto não é verdade mas infelizmente não encontro qualquer desmentido.

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